quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Caroço de Tucumã não é Anticoncepcional*

 


Tem piranha no pirarucu! assim anunciava pela cantina do antigo ICHL da UFAM o saudoso cantor e ator Zezinho Correa, a venda de ingressos para a peça do escritor, dramaturgo e cineasta Márcio Souza, que seria estreada no pequeno Teatro Experimental do SESC, o TESC. 

Era a década de 70. Chegando na Universidade, com a cabeça cheia de dúvidas e perguntas sobre as grandes questões da existência, as razões últimas e primeiras das essências do mundo, parei para me perguntar o que o pirarucu tem a ver com a piranha. 

A metáfora, difícil de compreender somente com a frase isolada, caiu como um raio na minha cabeça quando assisti ao espetáculo. A arte cumpriu sua função: causar o espanto filosófico e o consequente senso crítico, numa cabeça até então abrigada por uma visão empírica e imediata do mundo. 

A fenda aberta com o raio da arte e do texto de Marcio Souza nunca mais fechou. A leitura da obra “A Irresistível Ascensão do Boto Tucuxi”, me aproximou do Marcio escritor e depois do Marcio pessoa, de quem me tornei amigo. Eu já era amigo de seus irmãos, Amecy e Deoclécio, o Deco. Daí, seguiram-se encontros, trabalhos, lutas em movimentos sociais e partido político, numa cúmplice e fraterna amizade. 

A última vez que nos encontramos foi no dia 29 de setembro de 2022, na Academia Amazonense de Letras, durante a solenidade de entrega da Medalha de Mérito Cultural Péricles Moares, outorgada a quem se destaca nos campos das letras, artes e mecenato. Naquele ano entenderam que eu merecia, por isso nessa noite tive a honra e alegria de receber das mãos de Márcio Souza (e do também do amigo e escritor Zemaria Pinto) a referida medalha. 

Apesar de um intelectual de primmeira linha, Acadêmico Imortal da AAL, Doutor Honoris Causa pela UFAM, Marcio não possuía as vestes pedantes e soberbas de tantos de pares seus. Tinha rigor na sua escrita e na sua fala, por certo, mas nos limites da cortesia do filósofo, como dizia Descartes, pois seu humor o diferenciava, sobretudo pelo tom de ironia que o marcava, principalmente quando se referia à mediocridade que assola as elites manauaras. Cunhou, ou pelo menos deu “categoria de análise” à expressão “Leseira Baré”. Certa vez chamou a UFAM de Grupo Escolar Universidade do Amazonas, irritando algumas cabeças de professores e professoras que carregavam carapuças. E assim caminhava com seu humor irônico e às vezes um pouco mais ferino. Sua intenção não era de ofender, mas de provocar reflexão, embora às vezes sua impaciência fazia rir com sacadas hilárias, como a que presenciei no antigo ICHL. 

Havia uma aluna do Curso de Comunicação Social da UFAM que estava escrevendo sua monografia de final de curso e precisava de um título para seu trabalho. O tema que abordava era sobre a esterilização de trabalhadoras do Distrito Industrial que as indústrias do DI estavam promovendo, para evitar despesas com gravidez. Como ela pertencia ao corpo de atrizes do TESC e por isso tinha intimidade com o Marcio, pediu a ele uma sugestão de título. Depois de ele sugerir uns cinco, ela, insatisfeita, insistiu, alegando que queria um que tivesse raiz amazônica, cara de caboclo, um título baré. Frente à irritante insistência da moça, já sem paciência, Marcio encerrou a conversa dizendo, então escreve assim: Caroço de Tucumã não é anticoncepcional. 

Esse é o Márcio que vou levar na lembrança para o resto da minha vida. Vai com Deus, amigo, dá um abraço no Deco.


*José Cyrino

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Vida e Obra Thiago de Mello

Vídeo: Poeta Luiz Bacellar

Mais lidas